29 de novembro de 2010

Breve reflexão sobre o cinema de Jean Rouch





Decidi abordar numa breve reflexão a obra de Jean Rouch pelo facto de se tratar de uma referência incontornável do cinema etnográfico e por aliar o documentário com a ficção nos seus filmes.
Na verdade, em todas as ficções existe uma componente etnográfica, quer pelo conteúdo, quer pela forma, há sempre uma relação com a experiência de uma cultura sugerida na história. A percepção de uma cultura compromete uma análise detalhada que requer a sensibilidade do etnólogo. A descrição etnográfica expõe a experiência do investigador no terreno numa linguagem que leva em conta a sua sensibilidade, as suas qualidades de observação e o seu ponto de vista criativo, face à realidade com que se confronta. È no conjunto destes factores que o etnólogo constrói um saber específico, característico do método antropológico. Na construção de uma linguagem, há a necessidade de estabelecer relações entre o conteúdo e a forma pela sensibilidade artística e visual do observador. Jean Rouch, síntese do antropólogo e do cineasta, foi buscar influências a Flaherty no método do olhar e a Vertov na mestria técnica.

A obra de Jean Rouch é geralmente conhecida em três categorias[1]: os filmes de “registo etnográfico” (Le Maître Fous); os filmes de “improvisação” (Jaguar, Moi, Un Noir) e os filmes de “ficção” (Gare du Nord, Cocorico Monsieur Poulet). Estas categorias representam o processo de Rouch para atingir a “verdade procurada”[2] conseguida por um processo de improvisação que se desenvolve a partir deste modo:

“O “outro” é retirado do seu contexto sócio-cultural imediato e envolvido numa situação extra-ordinária, ou seja, uma situação criada, desvinculada da sua vida quotidiana” [3]

Assim, Rouch estimula a auto - mise en scéne das personagens reais abdicando da mise en scéne do cineasta. A maior parte dos filmes etnográficos pretendia registar situações do terreno que aconteceriam independentemente da presença da câmara. Mas o método de improvisação de Rouch vem criar uma linguagem distinta do método do documentário antropológico: é a actuação da câmara e a consciência dela, por parte dos sujeitos observados, que condiciona a situação registada. É por este método que o personagem se liberta da condição de sujeito observado, tornando-se sujeito participante para a construção do personagem em conjunto com o cineasta. O que permanece como “verdade”, na obra de Rouch, é o processo que se desenvolve para atingir o objectivo de cada filme.

“Para mim a ficção é tão verdade como a realidade. A partir do momento em que aprendo as regras do jogo, que parecem absurdas, construo praticamente a improvisação total. (...) Em geral, os filmes que faço não têm nada a ver com o argumento que estava escrito. Para mim, o grande momento é a improvisação.”[4]

O plano sequência passou a ser possível quando apareceram as câmaras com uma autonomia de 10 minutos.[5] Depois de dominar a técnica, Rouch passou a treinar a improvisação do movimento, geralmente com objectivas grande angular. É crucial que seja ele o próprio operador de câmara, para a possibilidade de, sendo ele o primeiro espectador, poder refazer o enquadramento durante o percurso do plano. Rouch refere a importância do domínio da mímica no plano-sequência.[6] Para além do conhecimento prévio da cultura a ser filmada, pela investigação e trabalho de campo sobre ela, o observador tem de conseguir acompanhar o mínimo incidente dos personagens durante a filmagem.

“Nós andávamos de modo completamente anormal, pondo a ponta do pé antes do calcanhar (...) Outro elemento é amortecer estes movimentos.” [7]

Rouch foi o primeiro a testar nos seus filmes o Nagra, que permitiu a gravação do som síncrono com as imagens, ao mesmo tempo que apareceu a câmara silenciosa de 16 mm, Éclair, com a qual foi filmado Chronique d’un été.[8] Com a aplicação da evolução tecnológica nos seus filmes, Rouch passou a conseguir fazer um cinema que capta directamente a realidade. Estes novos materiais enquadram-se na filosofia do cinema directo e do cinéma-vérité, para a qual Rouch contribuiu ao abrir os ateliers Varan (1981), um atelier de “tomada de vistas directa”[9].

O mais motivante no estudo de autores que trabalharam com uma narrativa, é analisar experiências que tentaram sair da matriz mais eficaz de gestão de conteúdos. Rouch conseguiu-o, de certa forma, marcando uma postura em relação a toda uma tradição do documentário, resolvendo o problema da estrutura inicial dos filmes etnográficos e estabelecendo uma correlação entre um estudo antropológico e a ficção, fundamentada nos seus métodos de improvisação.


[1] Ver FREIRE, Marcius, Jean Rouch e a invenção do Outro no documentário, Universidade Estadual de Campinas, p. 58
[2] Ibidem, p. 55
[3] Ibidem, p. 61
[4]Ver entrevista a Jean Rouch in RIBEIRO, José da Silva, op.cit., p. 33
[5] Ver entrevista a Jean Rouch in RIBEIRO, José da Silva, op. cit., p. 37
[6] Ibidem, p. 31
[7] Ibidem, id.
[8] Ver FREIRE, Marcius, op. cit., p. 62
[9] Ver entrevista a Jean Rouch in RIBEIRO, José da Silva, op. cit.,p. 32


Rita Couto nº 623