22 de novembro de 2010

Chantal Akerman “Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”



“De que modo o tempo se faz sentir num plano? Ele torna-se perceptível quando (…) percebemos, com toda a clareza, que aquilo que vemos no plano não se esgota na sua configuração visual, mas é um indício de alguma coisa que se estende para além do plano, para o infinito: um indício de vida”.

Esta frase é um bom ponto de partida para aquilo que podemos absorver de melhor com Chantal Akerman.

Chantal Akerman revelou-se, para mim, uma nova referência no cinema. As suas obras foram vistas com um enorme fascínio e sinto-me pequena quando tento analisar aquilo que a cineasta fez pelo cinema. As suas obras são complexas e cheias de pormenores deliciosos que as tornam difíceis de serem analisadas se não for mantida uma certa distância objectiva.

Todas as questões levantadas por Chantal Akerman são questões que me interessam e que tocam o meu lado humano e profissional. Os ângulos são extasiantes, a duração do plano é bem controlada, o acontecimento é bem delineado. Tudo o que é Chantal Akerman é aquilo que esta transpõe para os seus filmes. Os seus filmes são um espelho daquilo que é a cineasta. Reconhecida por um estilo hiper-realista, o trabalho de Akerman visa inscrever as imagens entre as imagens.

“Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles” de 1975 é o seu filme mais conhecido e foi aquele que mais me interessou enquanto estudante de cinema. Este filme exemplifica uma dedicação às elipses do cinema narrativo convencional. Para mim este é um filme que mostra tudo e que tem um rigor formal exemplar. Este filme é síntese perfeita de tradições opostas, e que redefiniu o realismo no processo.

''Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles,'' trata de factos sem adornos. É sobre os olhares e os sons das coisas e das pessoas comuns, que grava com tal clareza e precisão inquietante que tem o efeito de encontrar ameaças em objectos banais e a maldição em personagens comuns.

A ideia de Chantal Akerman era, também, a representação da mãe, nas imagens que detinha do seu quotidiano. Diz Akerman: “Comecei com várias imagens precisas da minha infância: a observar a minha mãe no fogão; a minha mãe a transportar pacotes… porque é que escolhi uma mulher bonita? Porque os homens pensam que as mulheres, dentro de casa, são feias. A minha mãe é linda”. Isto leva-nos também a um pensar do quotidiano, às nossas memórias de infância, às nossas memórias sobre a nossa mãe, etc. Tarefas tão comuns como cozinhar e o tempo que Chantal Akerman dá a esses planos, dá-nos uma contemplação sobre o dia-a-dia e o que de mais comum existe nele.

Digamos que Akerman pretende apresentar as atitudes corporais da mulher como algo associado ao nomadismo, numa permanente insatisfação que leva à demanda da identidade. As suas personagens estão numa permanente deslocação – sentimental, geográfica – e por isso podemos falar em Akerman como sendo, nesse sentido, uma cineasta intimamente deleuziana. Segue Deleuze: “Os estados do corpo segregam a lenta cerimónia que liga as atitudes correspondentes, e desenvolvem um gestus feminino que capta a história dos homens e da crise do mundo”. Movem-se os filmes de Chantal Akerman, assim, enquanto tratados do devir-mulher e do pulsar político do quotidiano.

Chantal Akerman surge ao mesmo tempo que a nova era do feminismo, e os seus filmes tornaram-se textos fundamentais no campo emergente da teoria do cinema feminista. O feminismo colocou a questão aparentemente simples: de que se fala quando uma mulher fala num filme?

Chantal Akerman insistiu de forma convincente que os seus filmes e as suas histórias são o locus da sua perspectiva feminista. Os muitos argumentos sobre a forma que um "cinema das mulheres" deve ter, giram em torno de uma dicotomia presumida entre o trabalho considerado realista (ou seja, acessível) e do avant-garde (sentido elitista).

Rotular o trabalho de Chantal Akerman "minimalista" ou "estruturalista" ou "feminista" é perder muito do que ela trata. Temas fortes nos seus filmes incluem as mulheres no trabalho e em casa, os relacionamentos das mulheres com os homens, mulheres e crianças, comida, amor, sexo, romance, arte e narrativa. Cada filme de Chantal Akerman é um mundo em si mesmo e demanda ser explorado nos seus próprios termos.

Susana Chaby Lara

Nº 620