NAGISA OSHIMA E O IMPÉRIO DOS SENTIDOS

Oshima procurou resgatar a familiaridade ancestral dos japoneses com a natureza e o mundo material, incluindo a livre expressão do sexo, experiências radicais de violência e a aceitação da morte, bem como a prática do suicídio. O filme que melhor expressa isto, é O Império dos Sentidos (1976), Oshima resolve sem medo penetrar na intimidade do seu povo, mostrando a sobrevivência de tradições eróticas que incluíam a morte como clímax do prazer. Trata-se da reencenação da história real de Sada Abe, uma criada que, durante os anos 30 - no auge do militarismo-, após semanas de sexo ininterrupto com seu patrão, o estrangulou e mutilou, para obter o máximo de satisfação sexual. Segundo Oshima, o caso de Sada comprova a sobrevivência, nos tempos de opressão, de uma cultura japonesa da liberdade.
Em Império dos Sentidos, Oshima narra uma paixão sexual sem inibições, com a finalidade de fazer um estudo sobre o Amor e a Morte. A criada Abe Sada (Eiko Matsuda) e o seu amo Kichi (Tatsuya Fuji), ultrapassam todos os limites existentes numa relação sexual e vão em busca do conhecimento carnal, através da fusão física dos corpos que leva uma submissão mútua e alienada de qualquer regra de ordem moral.
Todo este crescendo de paixão e de novos acontecimentos na vida sexual deste casal, é colmatado no inevitável sacrifício da personagem masculina. O recurso a planos longos de câmara fixa dotam este filme de uma grande importância em termos psicanalíticos de modo que o espectador se vai fascinando e angustiando conforme vai penetrando no universo erótico de Sada e Kichi.
Sada é hipersensível ao contacto sexual e este cresce no decorrer da sua relação com Kichi. Ele vai inicialmente descobrindo a sexualidade de Sada, mas acaba por ser transformado num objecto de desejo da criada. Celebram uma cerimónia nupcial para fortalecer os vínculos da entrega, momento em que Kichi passa a ser zelosamente custodiado por Sada, que ameaça amputar-lhe o pénis se ele for infiel. Com este significativo passo, os laços da união entre ambas as personagens estreitam-se e Sada começa a demonstrar uma total veneração pelo membro viril de Kichi, que está em permanente estado de erecção. A devoção de Sada leva-a a desejar a completa possessão dos genitais do seu marido.
O poderoso desejo sexual que domina Sada eleva a sua capacidade para conceber fantasias eróticas que materializa em forma de jogos. Tal efeito pode ser visto na sequência em que se opta por converter o mero acto de comer num acto de amor. Sada obriga Kichi a devorar um ovo que introduziu previamente na vagina. Neste sentido, o casal continua na busca de fantasias que satisfaçam o apetite sexual de ambos. O primeiro passo em direcção à destruição acontece quando o casal introduz o castigo corporal como sistema de prazer. Uma vez descoberta esta vertente sadomasoquista, KIchi e Sada entregam-se a ela como recurso final: a capacidade devoradora de Sada é tão grande e a submissão de Kichi tão absoluta que o destino destas duas personagens só poderá ser trágico.
A definitiva obediência de Kichi aos desejos de Sada, conduz à sua morte, mas é uma submissão aceite voluntariamente da qual ele não se arrepende porque previamente se ofereceu totalmente a Sada. Do mesmo modo, Sada não lamenta a morte de Kichi pois esta morte resultou de uma absoluta entrega sexual. Note-se então que o espectador não assiste a um acto homicida, mas sim a um autêntico acto de amor.
Oshima conclui o filme com a insistentemente anunciada amputação dos genitais de Kichi. Sada conserva-os como um objecto de adoração e uma voz off diz que se trata de uma história baseada em factos reais.
O Império dos Sentidos proporcionou ao realizador, plena liberdade de criação, sobre a qual elaborou tanto uma reflexão sobre a condição existencial do ser humano fundada sobre os pilares do desejo do prazer e do excesso da transgressão, ao entrar na intimidade do povo japonês e demonstrando a sobrevivência de tradições eróticas. Império dos Sentidos não reproduz tabus e não apresenta o sexo como algo vergonhoso ou como uma fantasia de escape. Em vez disso, ele apela a uma aestetica e a uma teatralidade em que o privado e o tabu não existem, em que as pensões pelas quais as personagens vão passando são metaforicamente um teatro mágico, um espaço separado do mundo real e muito ligado ao sonho (Turim, 1998, pag. 132).
A polémica em volta do filme gerou basicamente duas opiniões díspares: uma considera tratar-se da mais pura e gratuita pornografia travestida de filme artístico, com o objectivo único de provocar o espectador e o ir indignando gradualmente. A outra argumenta a subtil e poderosa crítica social que simboliza ao descrever de uma forma ímpar e ousada o espaço máximo de liberdade íntima num contexto de opressão social. Esta perspectiva nega também a gratuitidade das cenas e acrescenta tratar-se de uma encenação desafiadora e corajosa, bela e original.
Império dos Sentidos constitui um importante documento sócio-histórico e revela-se também como um momento central na história do cinema. Poucos filmes se fizeram com um cariz tão sexualmente transgressor, tão libertário e capaz de colocar à prova as audiências como este.
BIBLIOGRAFIA
BURCH Nӧel, To a Distant Observer, Form and meaning in Japanese Cinema, Univ. of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1979
The Criterium Collection, Nagisa Oshima On In The Realm of Senses 2009, 27 de Maio 2010, http://www.criterion.com/current/posts/1109-nagisa-oshima-onin-the-realm-of-the-senses CAHIERS DU CINEMÁ. Nagisa Oshima, Collection Auteurs, 1986.
TURIM, Maureen Cheryn, The films of Oshima Nagisa: Images of a Japanese Iconoclast, London, 1998.
Susana Realista
Nº. 640