“O discurso ético não pára de nos falar, não de essências, ele não crê nas essências, mas de potência, a saber, as acções e paixões de que uma coisa é capaz.”
Gille Deleuze, sobre a ideia da Potência de um Corpo em Espinosa
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A propósito da aula do dia 8 de Novembro, na qual visionámos o filme Husbands de 1970, proponho uma análise de um outro grande filme, o filme que antecedeu Husbands, a saber, Faces de 1969 - a partir de uma ideia particular - o cinema dos corpos, o gestus do corpo.
Como Thierry Jousse bem defende, descobrir a obra de John Cassavetes é proporcionar uma experiência única e física no cinema. Um cinema no qual todas as distâncias são anuladas. O espectador é constante e fortemente afectado por um vórtice de sensações quentes, fortes e directas, bem presentes e reais, próximas, demasiado próximas. São mais que uma essência, são uma potência. Como Deleuze fez a apologia de Espinosa numa das suas aulas:
“Espinosa não define nunca o homem como um animal racional, define-o por aquilo que ele pode, corpo e alma. (…) Ser louco tambem faz parte do poder do homem. (…) A potência não é aquilo que eu quero, por definição, é aquilo que eu tenho. Tenho tal e tal potência e é isso que me situa na escala quantitiva dos seres” [1]
Uma força de vida. Uma potência de vida, uma forma forte de existir.
Os actores e personagens confudem-se nesta força existencial de loucura e afundamento dos corpos. Corpos fortes e fracos, nervos e sensações provocadas por perdas. Há sempre um corpo e vários corpos que se entrelaçam ao ponto de parecer indiscerníveis.
Em Faces há uma forte captação dos corpos, uma cisão dos corpos que se misturam, que chocam uns com os outros e que se torcem. A câmara é táctil – é um olho que toca os corpos, os rostos. Também e por isso, Faces foi também já nomeado como um documentário de rostos.
No entanto, a força não está sempre tão visivel e explicitamente presente. Há também o corpo frágil: o corpo vigiado para a auto-destruição. Em Faces estamos perante muitos corpos que também se abatem, que sobrevivem através da loucura, do álcool. Cassavetes desintegra-os, aos corpos. Leva-os a um ponto de grau zero de existência, mas para depois apreender melhor o ser que se rescontrói. O cineasta tem consciência da carne no seu desmoronamento, para tornar como ponto de partida, a regeneração do ser, de o voltar a potenciar. É, como para Deleuze em Logique de La Sensation, o limite do corpo vivido, o corpo sem orgãos, o que está para além do organismo que por sua vez, aprisiona o corpo. Este corpo no limite vivo, este corpo sem orgãos é também o corpo sob efeito do álcool ou a esquizofrenia, cuja realidade viva tem verdadeiramente a designação de histeria. E histérico é ao mesmo tempo aquele que impõe a sua presença.[2]
Na cena da discoteca, há uma aproximação a uma certa abstracção. As formas aparecem e desaparem numa intermintência. A cada instante as personagens vão emergir no caos ou o corpor vai desaparecer na noite e no fumo. Há assim a força do gestus [3]:
“É a grandeza da obra de Cassavetes ter alterado a história, a intrigra ou a acção, mas mesmo o espaço, para atingir as atitudes como as categorias que põem o tempo no corpo, assim como o pensamento na vida.”[4]
A história é segregada pelos personagens, existindo, assim, a exigência de um cinema dos corpos, no qual os personagens são reduzidos às suas atitudes corporais e “o que tem de sair é o gestus, isto é, um «espectáculo», uma teatralização ou uma dramatização que vale para qualquer intriga.”[5]
No filme Faces está bem vincado a noção de que o espaço é ligado pelo corpo, pelo gestus do corpo. Cassavetes constrói, desta maneira, um espaço fragmentado e desconectado que é composto e colado pelo gestus.
“É o encadeamento formal das atitudes que substitui a associação de imagens.”[6]
[1] in webdeleuze.com, “Aula de 21.12.1980, Vincennes”
[2] DELEUZE, Gilles, Logique de La Sensation, Ed. la différence
[3] DELEUZE, Gilles, A Imagem-Tempo Cinema 2, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006 onde se lê: “(…) gestus é o desenvolvimento das próprias atitudes, opera uma teatralização directa dos corpos, muitas vezes discreta, visto que se torna independente de qualquer papel.” p.247
[4] Ibidem
[5] Ibidem