A seguir ao filme Ossos (1997) Pedro Costa despoja-se do aparato cinematográfico habitual. Num método específico, sem durações impostas, equipas reduzidas e com leve tecnologia estabelece uma relação directa com os personagens no contexto das suas vidas e filma No quarto da Vanda (2000). O realizador volta ao bairro de lata e, durante a fase final de destruição e o processo de mudança, explode Juventude em marcha (2006), que forma com os anteriores a trilogia centrada na extinta comunidade das Fontaínhas. Numa postura ética Pedro Costa tornou-se parte do bairro, adoptou-o como a sua ‘tribo’ e mergulhou nos problemas das pessoas. Desafiou habitantes dessa comunidade a construir com ele um objecto fílmico, com a alma e a cultura deles. Com um elenco essencialmente formado por não-actores, que desempenham ou estão próximos dos seus próprios papéis. Desenvolve um argumento baseado nas histórias de vida dos protagonistas, numa reflexão conjunta com eles e que se completa na montagem. O realizador não abdica do nível de elaboração plástica e teatral, nem do rigor formal, mas recusa uma estética naturalista e a ideologia da transparência. Cada cena tem no máximo dois ou três planos, uma ‘imobilidade’ que transmite carga dramática. Destaca a subtileza dos movimentos, o tempo dos silêncios, das falas e dos gestos dos homens e das mulheres que habitam o filme. Numa aproximação aos sentimentos deles e do quotidiano circunscrito à exiguidade dos espaços é sugerida uma analogia entre a prisão e o espaço social de imigrantes africanos e portugueses de baixa condição social.
O início do filme Juventude em marcha mostra as paredes de um beco degradado na meia-luz da noite. Através de uma janela são arremessados grandes objectos que se espatifam no chão. No plano seguinte uma mulher negra revoltada, empunha com firmeza uma lâmina e num monólogo exalta a coragem da sua juventude em Cabo Verde. Ela recua e a sua imagem desaparece do filme com o negro que oferece o título. Esta abertura empresta o tom à narrativa. Mas ela, “uma mulher com a cara de Coltilde ou uma mulher parecida” permanece, até ao fim do filme, no discurso do protagonista — porque o deixou. Ventura é a figura central que na linha do presente se vai encontrando com os ‘filhos’ (legítimos ou imaginários). Visitas que nos dão a sentir o desenraizamento e a desagregação humana.
O filme assenta numa narrativa elíptica e fragmentada pela alternância dos espaços e do tempo. O passado vai estando presente na alma e nas palavras das personagens, mas é ‘materializado’ através de dois imigrantes negros na sua barraca nos anos 70. Na primeira cena da barraca, Lento (iletrado) pede a Ventura (em ‘novo’) que lhe escreva uma carta para a mulher “para mandar saudades... uma carta de amor”. A carta em construção é a derradeira metáfora que é refrão ao longo do filme.
Lento mostrará ter aprendido a carta que recita de mãos dadas com Ventura — passado e presente. Com a elipse que faculta o arco, Lento passa a ser mais um ‘filho’ de Ventura na nova urbanização, a personagem sofre a transmutação para a actualidade e confronta-se com as novas realidades. Tem a casa e a família, mas mantém-se desenraizado e promove um suicídio colectivo face aos problemas e a miséria com que se depara.
A iminência de uma condenação — uma morte anunciada. Pedro Costa mostra uma especificidade portuguesa — a origem e o desenraizamento dos habitantes do bairro das Fontaínhas. Os problemas reais deste universo urbano de marginalizados são uma questão universal e sentimo-los inscritos na tela. A figura do alter ego do realizador é ‘eliminada’ da representação e o filme demonstra uma proposta autoral clara, genuína, e inovadora. Pela temática, opções estéticas, estilo de mise-en-scène e uma abordagem anti-ilusionista, Juventude em marcha é uma marca na modernidade do cinema contemporâneo e de resistência aos padrões do cinema industrial.
Adriano Mendes, nº 629