21 de janeiro de 2011

Juventude em marcha de Pedro Costa


A seguir ao filme Ossos (1997) Pedro Costa despoja-se do aparato cinematográfico habitual. Num método específico, sem durações impostas, equipas reduzidas e com leve tecnologia estabelece uma relação directa com os personagens no contexto das suas vidas e filma No quarto da Vanda (2000). O realizador volta ao bairro de lata e, durante a fase final de destruição e o processo de mudança, explode Juventude em marcha (2006), que forma com os anteriores a trilogia centrada na extinta comunidade das Fontaínhas. Numa postura ética Pedro Costa tornou-se parte do bairro, adoptou-o como a sua ‘tribo’ e mergulhou nos problemas das pessoas. Desafiou habitantes dessa comunidade a construir com ele um objecto fílmico, com a alma e a cultura deles. Com um elenco essencialmente formado por não-actores, que desempenham ou estão próximos dos seus próprios papéis. Desenvolve um argumento baseado nas histórias de vida dos protagonistas, numa reflexão conjunta com eles e que se completa na montagem. O realizador não abdica do nível de elaboração plástica e teatral, nem do rigor formal, mas recusa uma estética naturalista e a ideologia da transparência. Cada cena tem no máximo dois ou três planos, uma ‘imobilidade’ que transmite carga dramática. Destaca a subtileza dos movimentos, o tempo dos silêncios, das falas e dos gestos dos homens e das mulheres que habitam o filme. Numa aproximação aos sentimentos deles e do quotidiano circunscrito à exiguidade dos espaços é sugerida uma analogia entre a prisão e o espaço social de imigrantes africanos e portugueses de baixa condição social.
O início do filme Juventude em marcha mostra as paredes de um beco degradado na meia-luz da noite. Através de uma janela são arremessados grandes objectos que se espatifam no chão. No plano seguinte uma mulher negra revoltada, empunha com firmeza uma lâmina e num monólogo exalta a coragem da sua juventude em Cabo Verde. Ela recua e a sua imagem desaparece do filme com o negro que oferece o título. Esta abertura empresta o tom à narrativa. Mas ela, “uma mulher com a cara de Coltilde ou uma mulher parecida” permanece, até ao fim do filme, no discurso do protagonista — porque o deixou. Ventura é a figura central que na linha do presente se vai encontrando com os ‘filhos’ (legítimos ou imaginários). Visitas que nos dão a sentir o desenraizamento e a desagregação humana.
O filme assenta numa narrativa elíptica e fragmentada pela alternância dos espaços e do tempo. O passado vai estando presente na alma e nas palavras das personagens, mas é ‘materializado’ através de dois imigrantes negros na sua barraca nos anos 70. Na primeira cena da barraca, Lento (iletrado) pede a Ventura (em ‘novo’)  que lhe escreva uma carta para a mulher “para mandar saudades... uma carta de amor”. A carta em construção é a derradeira metáfora que é refrão ao longo do filme.
Lento mostrará ter aprendido a carta que recita de mãos dadas com Ventura — passado e presente. Com a elipse que faculta o arco, Lento passa a ser mais um ‘filho’ de Ventura na nova urbanização, a personagem sofre a transmutação para a actualidade e confronta-se com as novas realidades. Tem a casa e a família, mas mantém-se desenraizado e promove um suicídio colectivo face aos problemas e a miséria com que se depara.
A iminência de uma condenação — uma morte anunciada. Pedro Costa mostra uma especificidade portuguesa — a origem e o desenraizamento dos habitantes do bairro das Fontaínhas. Os problemas reais deste universo urbano de marginalizados são uma questão universal e sentimo-los inscritos na tela. A figura do alter ego do realizador é ‘eliminada’ da representação e o filme demonstra uma proposta autoral clara, genuína, e inovadora. Pela temática, opções estéticas, estilo de mise-en-scène e uma abordagem anti-ilusionista, Juventude em marcha é uma marca na modernidade do cinema contemporâneo e de resistência aos padrões do cinema industrial.

Adriano Mendes, nº 629

12 de janeiro de 2011

Der Himmel über Berlin
(As Asas do Desejo. Wim Wenders, 1987.)



            A obra de Wenders é povoada de rostos plurais, a proposta uma eterna viagem, uma eterna transição entre paisagens e culturas. Os seus personagens errantes vagueiam pelos caminhos sem destino definido, o foco de Wenders encontra-se no percurso, na viagem interior mais do que na narrativa.
            Der Himmel über Berlin marca o regresso do realizador à Alemanha depois de dez anos de ausência. Sob o olhar de dois anjos que vagueiam sobre Berlim temos acesso aos pensamentos intímos das personagens urbanas. A cidade toma a forma de uma Torre de Babel moderna onde reina a incomunicabilidade e onde maiores do que as fronteiras físicas (Muro de Berlim) surgem barreiras humanas cada vez mais sólidas. “Cada pessoa na Alemanha é um estado”, reflecte Wenders. A noção de divisão está presente durante todo o filme através das relações estabelecidas entre universos opostos: os dois lados do muro, o universo feminino e o masculino, registo a preto e branco e a cores, anjo e humano, material e imaterial, carnal e espiritual, etc. Na Berlim dividida de Wenders existem diálogos impossíveis entre mundos opostos (material e imaterial, anjos e humanos). A primeira hora do filme surge como uma sinfonia urbana, alternando entre as vozes interiores e o ruído de rádios e televisores. O olhar monocromático dos anjos reflecte um ideal de cinema para o realizador, um cinema que registe indiscriminadamente todos os fenómenos do mundo, todas as vozes e todos os pequenos acontecimentos quotidianos aos quais as personagens urbanas se tornaram cegas. 



            O filme evoca um estado de espírito de elegia, devaneio e meditação.[1] O registo não se compromete com a narrativa, existem possibilidades de narrativa, pequenos plot points mas o filme não se desenrola segundo as normas de causa-efeito.
            Os anjos vagueiam sobre a Terra desde o início do mundo, assistiram a tudo mas não participaram em nada. Damiel, o anjo, decide abandonar o seu ponto de vigia eterno para se tornar humano, para ter a possibilidade de sentir o tempo, de percepcionar a cor, de sentir o calor físico, de ter acesso aos mais pequenos prazeres do quotidiano humano e de amar.
            A ausência de narrativa, os efeitos de distanciação (registo monocromático e o registo a cores), a importância dada ao percurso mais do que ao objectivo, a presença do quotidiano, a interioridade e o ser, o cenário «dream like» do filme que torna a paisagem real numa espécie de paisagem interior, fazem com que este filme se situe na esfera do cinema “moderno”. 

Ana Ramos
636 

7 de janeiro de 2011

The Holy Mountain, de Alejandro Jodorowsky


A Montanha Sagrada (The Holy Mountain) é um filme de 1973, do diretor chileno Alejandro Jodorowsky.
É o quarto filme do realizador, que já havia obtido grande destaque da crítica com o filme anterior, El Topo (1970).
Seus filmes seguem extremamente difíceis de classificar, mas podem ser associados a elementos típicos do cinema moderno. Construções de espaços atemporais, personagens alegóricas e metafóricas, presença de elementos de multi – culturalidade, como temas de diferentes religiões e a constante ruptura com o padrão e o homogêneo da interpretação da arte.
Foi um dos criadores do chamado Movimento Pânico, mais ligado ao teatro, que tinha a intenção de resgatar as idéias surrealistas e a profunda sinceridade na criação artística, para quebrar todos os códigos e valores estabelecidos.   No intervalo da rodagem do filme A Montanha Sagrada, Jodorowsky comenta: “Precisamos matar algum espaço mental. Precisamos matar para sobreviver, destruir mentes. Quando eu digo ‘destruir’, digo abrir. Devemos abrir espaço para uma nova vida.

Abertos a essa nova vida, somos guiados pela narrativa através de símbolos e rituais alquímicos, maçônicos, astrológicos, egípcios e o repertório imagético e simbólico do tarô, o qual Jodorowsky é grande estudioso. Temos ainda no começo, animais esfolados e crucificados levados e adorados por uma procissão, um “circo” de animais realizando uma apresentação que conta a história da derrota dos astecas “pagãos”, representados por lagartos, pelos espanhóis católicos, representados por sapos obesos. Que no final são literalmente explodidos, dando a entender que nessa insanidade, ambos saem derrotados.
Uma simplista sinopse pode ser descrita como uma figura bizarra de Cristo que vagueia entre cenários pictóricos e grotescos, encontra um guia místico que lhe apresenta sete personagens que representam os planetas do sistema solar. Todos passam por uma série de rituais que os fazem absterem-se de todos os bens terrenos, para juntos irem até a montanha sagrada descobrir o segredo dos deuses imortais.

O filme é um verdadeiro ritual que estabelece uma linha de comunicação direta com o inconsciente, levando o espectador a uma “viagem” transcendental de descobertas através dos sentidos que as imagens revelam. Os cenários sempre cheios de elementos, muitas vezes hiper coloridos, fazem os olhos abrirem a um universo diferente do habitual, que cena após cena não trazem um entendimento claro da história e sim, uma própria interpretação dos acontecimentos capturando a poderosa essência imagética dos símbolos místico e religiosos.
Isso revela uma obra livre, sem nenhuma filiação e tradição, isenta de qualquer compromisso universal, isolando-se a sensibilidade de elementos atemporais e utópicos da condição humana, que está em constante busca de alguma razão para a vida e ligada ao sonho, o estado de elevação do pensamento.
Tudo isso é resulta por Jodorowsky ser diferente dos cineastas dos “cinemas novos” da década de 70, pois ele não é movido pela cinefilia, que instigou estudos sobre a área para formar uma metalinguagem visando estabelecer “diálogos” com os clássicos. Não é propriamente no cinema que se encontram os interesses desse diretor, seus filmes visam estabelecer outras relações, citadas anteriormente. Principalmente nos símbolos e rituais esotéricos, nas simbologias do tarô, e outros, buscando a expansão da consciência para atingir um grau maior, descobrir a montanha sagrada e se tornar imortal. E essa é a busca do próprio diretor: “Esse filme é minha própria busca por iluminação. Eu quero ser um Mestre. Eu penso em como é ser um Mestre. Eu leio sobre como é ser um Mestre. Eu me visto como um Mestre. Eu ajo como um Mestre. Eu me torno um Mestre”. E com isso nos defrontarmos com um nó na obra do mesmo, vê-la com olhos de cinéfilo ou de esotérico?


E toda essa história fantástica de uma epopéia, pode se tornar frustrante se tentarmos racionalizar seu conteúdo em busca de um entendimento. Principalmente quando chegarmos ao final da história, onde é revelada toda essa artimanha da produção cinematográfica, nos mostrando que depois de todas aquelas sensações, estamos apenas vendo um filme!

Leonardo Bortolin Bruno - aluno de intercâmbio da UFF - RJ

Referências: