4 de março de 2011

Lembrando "Le chant du Styrène" (O Canto do Estireno, 1959) de Alain Resnais

Numa altura em que as formas narrativas já não eram algo estranho ao formato documental, Alain Resnais toma proveito de um fim institucional, para solidificar aquilo a que chamou de “arte didáctica”, acompanhando o processo regressivo, desde um objecto de plástico (uma chávena vermelha), até à matéria-prima primeira (o petróleo), numa viagem que transcende entre os diversos espaços, num processo lírico, e mais do que tudo, ensaísta.
Tal como em todos os documentários de Resnais, é criada uma progressão entre diversos espaços, ou até mesmo, áreas topológicas do mundo, partindo não de um ponto fixo no presente, que se torna reminiscente, mas antes de um objecto, que não possui uma significância específica no seu contexto, mas que serve para despoletar uma memória, que obriga a integrar o sujeito no objecto, humanizando este último, e provocando a relação alternada entre os dois, agora na busca da sua origem.
No entanto, esta procura não é de todo concentrada, ou seja, a narração não procura remeter para um tema ou ideia geral, que englobe todas as ligações do documentário, e que concentre toda a estrutura deste, em volta de um centro, ou núcleo temático. Ao invés disso, a progressão do documentário está constantemente a criar novos centros, ou núcleos, que afectam todos os anteriores, e conduzem a reflexão, por um processo mimético à instabilidade e volubilidade do pensamento. A este tipo de narração, tipicamente expressiva, poder-se-á dar o nome de narração centrífuga, que revela não só a liberdade de pensamento do realizador, mas a forma expressiva que este encontra de datar a memória, através de uma base científica que usa como forma de expressão poética. Esta memória, no entanto, é única do autor, o que leva o próprio Deleuze a caracterizar Resnais como um cartógrafo, que através dos diversos mapas do passado, desenha o seu próprio, que acaba por atravessar, transversalmente, todos os outros.
Este procedimento narrativo adoptado por Resnais vê-se ilustrado na teorização, acerca da noção de “verdade” como absoluto, desenvolvida por Leibniz, e mais tarde por Borges, que concebe um universo, múltiplo e acentrado, composto por diversos mundos incompossíveis, ou seja, mundos cujas hipóteses de existência se anulam mutuamente. Ou melhor ainda, mundos que se desmentem uns aos outros. Desta forma, o tempo do mundo passa a ser uma linha que, sucessivamente, se bifurca entre presentes incompossíveis, e passados não necessariamente verdadeiros, todos eles existentes, e constituintes do “falso”, como solução e salvação da noção de “verdade”. É neste princípio que assenta a designação de “potências do falso” de Deleuze, que ajuda a desenvolver o método mais próprio da narração cristalina, o disnarrativo (termo criado por Alain Robbe-Grillet). O disnarrativo pretende assim, não ser uma negação da existência narrativa, mas uma negação desta narrativa como modelo de “verdade”. Tal deve-se ao facto de, ao se fazer uma globalização, e respectiva integração temática, confina-se a obra a um único sentido, sendo esta uma reprodução mimética e “verídica” do quotidiano, ao qual tudo se submete e compara, numa relação de “justiça”. Já no cinema disnarrativo, a pluralidade e multiplicidade de sentido não permite nunca uma sujeição a um único julgamento de “verdade”, pois a migração entre “bifurcações” implica sempre a incompossibilidade entre os vários sentidos, onde estes se criam, apagam e recriam, numa constante reciclagem de sentidos.
Assim, pode-se afirmar que é crucial a um registo ensaístico, como o de Resnais, um tal sistema narrativo que envolva uma polissemia de sentido, já que, sendo “a liberdade do pensamento”, uma das características fundamentais na transposição ensaística, é crucial que o autor não seja submetido a um modelo único de “verdade”, que avalie o seu progresso, através de uma base de veracidade, mas antes, que seja este a construir a sua verdade, paralela à do mundo, e onde a subjectividade é algo assumido na sua construção, ou talvez até, onde este pode “ser inocente, até na mentira” (A. Robbe-Grillet). É então, através do universo incompossivel, que o autor vai escolher um caminho único entre as diversas, e sucessivas, bifurcações, desenhando a sua reflexão entre as várias realidades.

Filipe Franco
613


11 de fevereiro de 2011

Inland Empire


A construção narrativa de Inland Empire apresenta uma estrutura totalmente distinta da clássica. Não há um princípio, um meio e um fim claros e objectivos. Na realidade há o que aparenta ser uma sequência de cenas não contínua e de difícil conjugação. Por outro lado, também esses  acontecimentos não ocorrem de acordo com uma ligação paralela de histórias, as quais aparentam dar-se ao mesmo tempo embora em espaços diferentes. Trata-se, na realidade, de uma apresentação contínua de acontecimentos estranhos e não justificados: vários quadros descontínuos de histórias que começaram in média rés e que permitiram ao espectador ter, por breves momentos, um ligeiro vislumbre de qualquer coisa que se passou.
Quando há, pela primeira vez, uma cena e uma personagem que se assemelha a algo que reconhecemos como normal no nosso mundo cinematográfico, esta é nos apresentada como sendo a personagem principal - Lara. Esta situação traz ao espectador uma sensação de maior segurança, que até aqui não lhe tinha sido dada. A vizinha, estranha personagem, entra pela casa de Lara e profere a seguinte frase “I am the new neighbour. I live just down the street”. Apesar da sensação de alguma dose de insanidade, que é transmitida pelo excessivo aproximar do plano à cara da actriz e da objectiva olho de peixe, esta personagem aparenta ser uma pessoa civilizada. Mais tarde, o diálogo começa a tomar proporções um pouco estranhas. A “nova vizinha” desabafa com a personagem principal contando-lhe que perdeu a noção de tempo, que já não sabe se hoje é na realidade o dia de amanhã, ou mesmo que não tem noção das horas, que já não sabe distinguir entre as 9:00 e as 24:00. Tem um discurso incrível e apenas inicialmente desconexo e sem qualquer sentido. A vizinha diz-lhe que “se fosse amanhã” Lara estaria “sentada ali” e aponta para os sofás que estão à sua esquerda. Afinal não passámos a ter uma história normal no sentido comum do termo. Mas sim uma maior sensação de perdição.
A frase da vizinha resume, na realidade, todo o tempo do filme. Não sabemos se estamos no filme ou se o tempo dos acontecimentos que presenciamos ocorrem antes ou depois, ou até se estão a acontecer em simultâneo. Não sabemos se voltamos atrás; se estamos no dia de ontem ou no de amanhã. E, nesta embrulhada temporal, surge a personagem principal, que se encontra no mesmo estado de espírito que esta encruzilhada intemporal. Uma das cenas junta estas duas irrealidades de uma forma incompreensível. Há o que aparenta ser um twist. Quando se dá uma reunião entre o realizador, o actor e a actriz estes ouvem um barulho no estúdio: O actor corre atrás de alguém que foge pelo cenário labiríntico - que está montado no estúdio onde decorre a reunião - mas esse alguém entretanto desaparece milagrosamente. Depois de, assumidamente, vermos o filme a ser rodado, Lara vai ter a uma casa e vê-se a si mesma, mais ao actor e ao realizador a terem aquela mesma reunião. Mais tarde Lara vê-se sentada à mesma mesa a ter aquela mesma reunião. Ela vê-se a si mesma. Surgem nos uma série de perguntas:  Voltámos atrás? Mas a história do filme que está a ser rodado avança; para onde é difícil de precisar. O espaço é um local difícil de definir. Se para os actores, que fazem uma pré-leitura do guião na reunião, o que está atrás de si é apenas de um cenário, para a personagem que Lara interpreta (e que se vê  ter a uma reunião) o cenário é, na realidade, um espaço muito real. Tal como a ideia que é dada ao espectador, quando este assiste a um filme. Racionalmente sabemos tratar-se de um cenário; que aquele espaço foi concebido e criado com um propósito. Mas aceitamo-lo como sendo real. É o espaço das personagens e, ao identificarmo-nos com elas, passa também a ser o nosso. Quando começamos a entrar no mundo que Lara interpreta, tal como ela, também não sabemos onde estamos, qual o tempo onde se encontra a história e o que realmente se está a passar. O espectador é confrontado com a irrealidade e manipulação do cinema, mas, ao mesmo tempo, não sai delas. O espectador afirma: isto não é real. Mas, ao mesmo tempo, vê-se envolvido numa história demasiado rocambolesca e complexa para conseguir sair dela e afirmar: não estou perante um filme. Parece tratar-se de um pesadelo. Temos consciência que o estamos a ter, mas não conseguimos libertar-nos. Parece real, apesar de sabermos que não o é. Vemos o backstage do filme que está ser rodado, como se de um making of se tratasse: mas continuamos com a personagem interpretada por Lara e com a sua visão conturbada de tudo aquilo que se passa à sua volta. Ela ainda não acordou. Apesar dos elogios que lhe tecem pela sua excelente representação no filme, ela continua na sua personagem. No final,  Lara "acorda" e vê finalmente os cenários. Esta vê no ecrã do cinema tudo aquilo por que passou durante o filme e ao qual nós assistimos. O mundo da ficção une-se com o mundo real. Já não se percebe o que é o quê. Num plano de costas uma rapariga vê na televisão o momento presente em que se encontra. Duas raparigas a correr no corredor. A rapariga ao mesmo tempo que as ouve na televisão ouve-as no seu mundo, a passarem lá fora no corredor. Há uma desconstrução extrema da construção da narrativa clássica. No final a objectiva olho de peixe, que antes filmava a vizinha, contempla agora a personagem principal que se vê sentada no mesmo banco que antes a vizinha lhe apontara. Voltamos novamente a uma incerteza. Esta outra personagem, que Lara agora contempla, é ela mas vestida de menina. Lara olha para o seu outro eu desconcertada e incrédula. Mas é com esta nova personagem que o filme acaba, em total contraste com a indumentária da nova personagem de Lara, numa festa onde pessoas totalmente desconhecidas dançam ao som de Nina Simone. A festa é o real e Lara já se encontra na nova personagem? Mas visto que estamos a ver um filme, a festa pode ser considerada real? e um cenário atrás desta festa? O filme acabou?

Sara Godinho
Nº 630

10 de fevereiro de 2011

Nagisa Oshima

Talvez o realizador mais original e interessante do cinema japonês, Nagisa Oshima, com os seus filmes tem tocado, comovido e chocado as audiências desde 1959, quando dirigiu o seu primeiro filme “Asu no taiya”. O mais recente e aparentemente o seu último filme é Gohatto, Taboo.

Nagisa Oshima é um realizador que traz à tona as questões difíceis da sociedade japonesa e a vida no Japão. Muitas pessoas preferem não ver esses tópicos no grande ecrã. Alguns dizem que é director Nagisa Oshima, que dirige filmes em busca da sensação, mas acho que o correcto é dizer que ele realiza filmes para pessoas que gostam de ver filmes. O Seu estilo é sempre visualmente surpreendentel e tudo nos seus filmes está cheio de metáforas.
“Ai no korida” (1976), Império dos Sentidos, introduz um tipo de mundo totalmente diferente. Ele fala sobre paixões sexuais que levam a um percurso totalmente destrutivo. Ele inclui uma cena onde uma mulher corta o pénis do seu amante. Esta cena fez com que alguns homens deixassem a sala de cinema a meio do filme. Mas, talvez ainda mais chocante que o filme foi a forma como a censura protestou contra a distribuição do filme no Japão. Portanto o percurso de Oshima para promover os seus filmes teve início na Europa, onde a censura não fosse tão apertada.  Este filme ainda é difícil de se ver no Japão. Esta é a razão pela qual a maioria dos Europeus já ouviu falar neste filme. 

O seu filme mais famoso e premiado é, talvez, “Merry Christmas mr. Lawrence” (1983), que fala sobre o momento em que Japão trava a sua guerra algures nas ilhas do Pacífico. O filme conta com a presença de Takeshi Kitano e David Bowie. A música foi composta por Ryuichi Sakamoto. O filme foi um grande sucesso. Introduziu o lado diferente do exército japonês, o cruel e o bastante cruel. A crítica contra o exército japonês é obvia, assim como é a mensagem anti-guerra. Talvez ele também pergunte aos espectadores "Será que as coisas têm que ser assim" e “O que é a verdadeira misericórdia? ".

Gohatto (1999) foi o filme muito chocante para o público japonês. Ela fala sobre Shinsengumi, uma força especial de samurais. O filme apresenta a ideia de que havia relações sexuais nos bastidores da Shinsengumi, ou seja, que os samurais estavam envolvidos em relações homossexuais entre si. O filme é muito comovente na sua beleza, mas a chateou muitos fãs da Shinsengumi, "não pode ser assim!". O filme é uma tragédia de muitas maneiras e novamente é fácil de ver a crítica contra a sociedade japonesa nele. No final do filme, a personagem interpretada por Takeshi Kitano, corta, com a sua espada, uma cerejeira em flor, e diz que "era demasiado bonita". Este parece ser Oshima, como quem quer dizer que a sociedade japonesa quer destruir alguma coisa muito bonita. É triste perceber que Gohatto parece ser o último dos seus filmes. Mas se assim for, não é uma despedida má.
Graças a Nagisa Oshima, os filmes Japoneses deixaram de passar despercebidos na Europa. 

Os filmes de Nagisa Oshima são, por vezes, duros e cruéis, mas é fácil ver o significado por trás disso. Ele nasceu durante o tempo em que o Japão estava no meio da guerra. Segundo as suas próprias palavras, na sua juventude "não havia nada que se assemelhasse a esperança". Os seus filmes foram repetidamente atacados pelas garras da censura. Ele viveu o tempo de barricadas de protestos estudantis violentos.
Diz-se que Oshima faz filmes como um samurai vive -luta para um fim. O mundo do cinema vai sentir a sua falta.

NAGISA OSHIMA
Nagisa Oshima foi chamado o menos inescrutável dos realizadores japoneses. Mas como líder e teórico-chefe do "movimento New Wave”, que começou no Japão, ao mesmo tempo, que em França, ele também foi considerado difícil e inacessível. Ele é, no entanto, um notável cineasta, amplamente conhecido no Ocidente, principalmente através “Ai No Korida” (1976), um tratado sobre o sexo físico, feito para um produtor francês, que rivalizava “Ultimo Tango a Parigi” (1972, O Último Tango em Paris) de Bernardo Bertolucci para notoriedade. Para alguns, era um filme estranho, tão radical e socialmente consciente da parte de um realizador, mas para ele, Sada e o seu namorado, não são loucos libertinos; são o abandono da sociedade num momento (anos trinta), quando o imperialismo japonês impunha um ethos puritano sobre a nação. "Façam amor, não guerra", pelo menos, um texto filial no filme. 

Cruel história de uma juventude
Oshima nasceu a 31 de março de 1932 em Kyoto. O seu pai, descendente de um samurai, era um pintor amador e poeta que morreu quando o Oshima tinha seis anos, deixando uma biblioteca, que incluia um grande número de textos marxistas e socialistas. Estes foram lidos por Oshima durante uma infância solitária, e na altura em que ele saiu do liceu, ele estava pronto para se tornar um activista estudantil, bem como escritor e dramaturgo. Enquanto estudava Direito na Universidade de Kyoto, ele liderou um grupo de estudantes que teve problemas com as autoridades: quando o imperador visitou o campus, o grupo mostrou cartazes, implorando-lhe para não se permitir ser endeusado porque muitos haviam morrido durante a guerra em nome da sua divindade.

Quando se formou, entrou para a Shochiku Film Company em 1954 como assistente de realização, apesar de sua reputação como um aluno "vermelho" e do facto de que havia mais de 2.000 candidatos para apenas cinco postos de trabalho. Cinco anos mais tarde um pouco apático, foi encarregado do seu primeiro filme como realizador: “Ai to Kibo no Machi” (1959, A Cidade do Amor e da Esperança) e “Seishun Zankoku Monogatari” (1960, Juventude Despida). Em 1960, ele também realizou “Taiyo no Hakaba” (O Enterro do Sol), uma história sobre a vida violenta nas favelas em que uma comunidade de vagabundos e desempregados vendem o seu próprio sangue em troca de alimentação e vestuário.

Cada um destes filmes contém um comentário social evidente, bem como o tipo de excitação exigida de um realizador mais comercial, mas o seu quarto filme, também realizado nesse ano, fez-lhe perder o emprego. “Nihon no Yoru Para Kiri” (1960, Noite e Nevoeiro no Japão) foi um ataque a ambos a Esquerda tradicional e aos activistas do movimento estudantil, chamando para a realidade uma nova forma de radicalidade. Quando um líder socialista foi assassinado poucos dias após o lançamento do filme, este foi apressadamente retirado de circulação.

Oshima reagiu através da criação de sua própria empresa de produção e realizou “Shiiku” (1961, As capturas), no qual um aviador americano negro é preso e eventualmente morto por moradores que não sabem que a Segunda Guerra Mundial finalmente terminou. Foi uma rejeição com raiva de valores morais tradicionais, sugerindo que o nacionalismo feroz do Japão e de ódio aos estrangeiros foram responsáveis pela guerra.  Somente as crianças da aldeia são vistos como um sinal de esperança - na última sequência um garoto afasta-se para longe do de um fogo comunal e calmamente constrói o seu 
próprio.

THE REALM OF THE SENSES
“O conceito de "obscenidade" é testado quando nos atrevemos a olhar para algo que desejamos ver, mas proibiram-nos de olhar. Quando sentimos que tudo foi revelado, "obscenidade" desaparece e há uma certa libertação. Quando aquilo que um queria ver não é suficientemente revelado, no entanto, o tabu continua, o sentimento de "obscenidade" permanece, e uma ainda maior obscenidade "vem a ser. Filmes pornográficos são, portanto, um campo de teste para "obscenidade", e os benefícios da pornografia são claras. O cinema pornográfico deveria ser autorizada, imediata e completamente. Só assim pode a obscenidade "ser prestada essencialmente sem sentido.
      - Nagisa Oshima, da "Teoria do Cinema Experimental Pornográfico" (1976) 



Embora o “Império Dos Sentidos” tenha sido feito à cerca de trinta e cinco anos atrás, ele nunca foi exibido no Japão, sem censura. Por conseguinte, embora reconhecido como um grande filme em qualquer outro lugar, e livremente exibidos noutros países, o verdadeiro trabalho permanece desconhecido para o público japonês.


É baseado num incidente real: uma mulher chamada Sada Abe notoriamente, se acidentalmente, matou o amante durante o próprio acto de amor. Fugindo da polícia, ela cortou e levou com ela o próprio órgão que os ligou a ela e ao amante. Ela ainda o tinha quando ela foi detida, e foi mais tarde condenada. 
A história é a de duas pessoas muito apaixonadas, consumido pelo amor, aquilo a que os franceses chamam de l'amour fou. Um exemplo extremo apropriado ao termo de amour fou é “L'amour fou”, filme de Jacques Rivette em 1968, onde o casal enlouquecido por amor não só se destrói a si mesmo como também o prédio de apartamentos onde vivem. Este filme foi exibido sem dificuldades em França e noutros países. Da mesma forma, no Japão, dois outros filmes da história de Abe Sada, “A Noboru Tanaka Woman Called Abe Sada” (1975) e “Sada Nobuhiko Obayashi” (1998), não tiveram problemas de distribuição.
A razão pela qual o filme de Oshima tem experimentado essas dificuldades no país da sua origem é que ele desafia a opinião japonesa convencional, e assim enfrenta e provoca as lógicas políticas que recaem sobre ele.

Oshima, no entanto, estava a realizar um tipo diferente de filme, que disse que "quebrou tabus" usando o erotismo não como algo para o seu próprio bem, como num “filme cor-de-rosa", mas como um veículo para explorar e desmistificar a cultura japonesa e o carácter japonês resultante. Para isso foi necessário criar uma maneira de filmar, um estilo que mostrou tudo e ao mesmo tempo encorajou empatia. O filme não são dois actores a tentar excitar-nos, como nos “filme cor-de-rosa”, o hard-core do filme de Oshima foi inventar algo acerca de duas pessoas reais que são excitantes um para o outro. Ele queria um erotismo politizado, em vez de um desempenho pornográfico.

Todos os filmes de Oshima são críticas à sociedade e aos pressupostos políticos que a compõem. Ele está interessado na reforma, mas rejeita a agenda social, que muitas vezes a acompanha. Assim, ele corajosamente enfrenta o principal inimigo, o sistema político que cria uma sociedade e, em seguida, em certa medida, a controla. Nos seus filmes, feitos entre 1959 e 1999, ele usa frequentemente crimes que indiquem deficiências da sociedade. Os seus primeiros filmes “A Cidade do Amor e Esperança” (1959) e “The Sun's Burial” (1960) são sobre a delinquência juvenil. “Boy” (1969) mostra os desafortunados cuja única opção é a criminalidade, e “The Ceremony” (1971) apresenta um sistema completo da família, um microcosmo político do próprio Japão, e o seu abraço de corrupção.

“Império da Paixão” (1978), filme de Oshima companheiro de “No Império dos Sentidos”, foi feito enquanto ele sofria uma perseguição no Japão por ter publicado aquele cenário pornográfico no filme anterior. É sobre um casal d'amour fou que mata o marido da mulher e são incapazes de escapar ao seu fantasma. Eles, também, não têm outra opção e devem pagar pelo seu crime nas mãos da polícia. Do filme, Tony Rayns disse que, aqui, o ódio de Oshima "relativamente à figura da autoridade atinge alturas jamais vistas desde “Death By Hanging”(1968). 

O “Império dos Sentidos”, também, tinha ambições políticas desde os seus primórdios, e foram estes que, em vez de qualquer amoralidade sexual percebida, causaram as suas dificuldades. Existem acusações políticas em todo o filme; Sada era originalmente uma criada, agora ela é a amante (em vários sentidos); o seu lucro (de sucesso) é a prostituição; ele opõe-se (e vai na direção oposta) da marcha do Exército Imperial, uma crítica constante da teoria e da prática de formação e funcionamento das organizações ligadas à sociedade. 


Postado por: Samuel Andrês - 633
10-02-2011

21 de janeiro de 2011

Juventude em marcha de Pedro Costa


A seguir ao filme Ossos (1997) Pedro Costa despoja-se do aparato cinematográfico habitual. Num método específico, sem durações impostas, equipas reduzidas e com leve tecnologia estabelece uma relação directa com os personagens no contexto das suas vidas e filma No quarto da Vanda (2000). O realizador volta ao bairro de lata e, durante a fase final de destruição e o processo de mudança, explode Juventude em marcha (2006), que forma com os anteriores a trilogia centrada na extinta comunidade das Fontaínhas. Numa postura ética Pedro Costa tornou-se parte do bairro, adoptou-o como a sua ‘tribo’ e mergulhou nos problemas das pessoas. Desafiou habitantes dessa comunidade a construir com ele um objecto fílmico, com a alma e a cultura deles. Com um elenco essencialmente formado por não-actores, que desempenham ou estão próximos dos seus próprios papéis. Desenvolve um argumento baseado nas histórias de vida dos protagonistas, numa reflexão conjunta com eles e que se completa na montagem. O realizador não abdica do nível de elaboração plástica e teatral, nem do rigor formal, mas recusa uma estética naturalista e a ideologia da transparência. Cada cena tem no máximo dois ou três planos, uma ‘imobilidade’ que transmite carga dramática. Destaca a subtileza dos movimentos, o tempo dos silêncios, das falas e dos gestos dos homens e das mulheres que habitam o filme. Numa aproximação aos sentimentos deles e do quotidiano circunscrito à exiguidade dos espaços é sugerida uma analogia entre a prisão e o espaço social de imigrantes africanos e portugueses de baixa condição social.
O início do filme Juventude em marcha mostra as paredes de um beco degradado na meia-luz da noite. Através de uma janela são arremessados grandes objectos que se espatifam no chão. No plano seguinte uma mulher negra revoltada, empunha com firmeza uma lâmina e num monólogo exalta a coragem da sua juventude em Cabo Verde. Ela recua e a sua imagem desaparece do filme com o negro que oferece o título. Esta abertura empresta o tom à narrativa. Mas ela, “uma mulher com a cara de Coltilde ou uma mulher parecida” permanece, até ao fim do filme, no discurso do protagonista — porque o deixou. Ventura é a figura central que na linha do presente se vai encontrando com os ‘filhos’ (legítimos ou imaginários). Visitas que nos dão a sentir o desenraizamento e a desagregação humana.
O filme assenta numa narrativa elíptica e fragmentada pela alternância dos espaços e do tempo. O passado vai estando presente na alma e nas palavras das personagens, mas é ‘materializado’ através de dois imigrantes negros na sua barraca nos anos 70. Na primeira cena da barraca, Lento (iletrado) pede a Ventura (em ‘novo’)  que lhe escreva uma carta para a mulher “para mandar saudades... uma carta de amor”. A carta em construção é a derradeira metáfora que é refrão ao longo do filme.
Lento mostrará ter aprendido a carta que recita de mãos dadas com Ventura — passado e presente. Com a elipse que faculta o arco, Lento passa a ser mais um ‘filho’ de Ventura na nova urbanização, a personagem sofre a transmutação para a actualidade e confronta-se com as novas realidades. Tem a casa e a família, mas mantém-se desenraizado e promove um suicídio colectivo face aos problemas e a miséria com que se depara.
A iminência de uma condenação — uma morte anunciada. Pedro Costa mostra uma especificidade portuguesa — a origem e o desenraizamento dos habitantes do bairro das Fontaínhas. Os problemas reais deste universo urbano de marginalizados são uma questão universal e sentimo-los inscritos na tela. A figura do alter ego do realizador é ‘eliminada’ da representação e o filme demonstra uma proposta autoral clara, genuína, e inovadora. Pela temática, opções estéticas, estilo de mise-en-scène e uma abordagem anti-ilusionista, Juventude em marcha é uma marca na modernidade do cinema contemporâneo e de resistência aos padrões do cinema industrial.

Adriano Mendes, nº 629

12 de janeiro de 2011

Der Himmel über Berlin
(As Asas do Desejo. Wim Wenders, 1987.)



            A obra de Wenders é povoada de rostos plurais, a proposta uma eterna viagem, uma eterna transição entre paisagens e culturas. Os seus personagens errantes vagueiam pelos caminhos sem destino definido, o foco de Wenders encontra-se no percurso, na viagem interior mais do que na narrativa.
            Der Himmel über Berlin marca o regresso do realizador à Alemanha depois de dez anos de ausência. Sob o olhar de dois anjos que vagueiam sobre Berlim temos acesso aos pensamentos intímos das personagens urbanas. A cidade toma a forma de uma Torre de Babel moderna onde reina a incomunicabilidade e onde maiores do que as fronteiras físicas (Muro de Berlim) surgem barreiras humanas cada vez mais sólidas. “Cada pessoa na Alemanha é um estado”, reflecte Wenders. A noção de divisão está presente durante todo o filme através das relações estabelecidas entre universos opostos: os dois lados do muro, o universo feminino e o masculino, registo a preto e branco e a cores, anjo e humano, material e imaterial, carnal e espiritual, etc. Na Berlim dividida de Wenders existem diálogos impossíveis entre mundos opostos (material e imaterial, anjos e humanos). A primeira hora do filme surge como uma sinfonia urbana, alternando entre as vozes interiores e o ruído de rádios e televisores. O olhar monocromático dos anjos reflecte um ideal de cinema para o realizador, um cinema que registe indiscriminadamente todos os fenómenos do mundo, todas as vozes e todos os pequenos acontecimentos quotidianos aos quais as personagens urbanas se tornaram cegas. 



            O filme evoca um estado de espírito de elegia, devaneio e meditação.[1] O registo não se compromete com a narrativa, existem possibilidades de narrativa, pequenos plot points mas o filme não se desenrola segundo as normas de causa-efeito.
            Os anjos vagueiam sobre a Terra desde o início do mundo, assistiram a tudo mas não participaram em nada. Damiel, o anjo, decide abandonar o seu ponto de vigia eterno para se tornar humano, para ter a possibilidade de sentir o tempo, de percepcionar a cor, de sentir o calor físico, de ter acesso aos mais pequenos prazeres do quotidiano humano e de amar.
            A ausência de narrativa, os efeitos de distanciação (registo monocromático e o registo a cores), a importância dada ao percurso mais do que ao objectivo, a presença do quotidiano, a interioridade e o ser, o cenário «dream like» do filme que torna a paisagem real numa espécie de paisagem interior, fazem com que este filme se situe na esfera do cinema “moderno”. 

Ana Ramos
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