4 de março de 2011

Lembrando "Le chant du Styrène" (O Canto do Estireno, 1959) de Alain Resnais

Numa altura em que as formas narrativas já não eram algo estranho ao formato documental, Alain Resnais toma proveito de um fim institucional, para solidificar aquilo a que chamou de “arte didáctica”, acompanhando o processo regressivo, desde um objecto de plástico (uma chávena vermelha), até à matéria-prima primeira (o petróleo), numa viagem que transcende entre os diversos espaços, num processo lírico, e mais do que tudo, ensaísta.
Tal como em todos os documentários de Resnais, é criada uma progressão entre diversos espaços, ou até mesmo, áreas topológicas do mundo, partindo não de um ponto fixo no presente, que se torna reminiscente, mas antes de um objecto, que não possui uma significância específica no seu contexto, mas que serve para despoletar uma memória, que obriga a integrar o sujeito no objecto, humanizando este último, e provocando a relação alternada entre os dois, agora na busca da sua origem.
No entanto, esta procura não é de todo concentrada, ou seja, a narração não procura remeter para um tema ou ideia geral, que englobe todas as ligações do documentário, e que concentre toda a estrutura deste, em volta de um centro, ou núcleo temático. Ao invés disso, a progressão do documentário está constantemente a criar novos centros, ou núcleos, que afectam todos os anteriores, e conduzem a reflexão, por um processo mimético à instabilidade e volubilidade do pensamento. A este tipo de narração, tipicamente expressiva, poder-se-á dar o nome de narração centrífuga, que revela não só a liberdade de pensamento do realizador, mas a forma expressiva que este encontra de datar a memória, através de uma base científica que usa como forma de expressão poética. Esta memória, no entanto, é única do autor, o que leva o próprio Deleuze a caracterizar Resnais como um cartógrafo, que através dos diversos mapas do passado, desenha o seu próprio, que acaba por atravessar, transversalmente, todos os outros.
Este procedimento narrativo adoptado por Resnais vê-se ilustrado na teorização, acerca da noção de “verdade” como absoluto, desenvolvida por Leibniz, e mais tarde por Borges, que concebe um universo, múltiplo e acentrado, composto por diversos mundos incompossíveis, ou seja, mundos cujas hipóteses de existência se anulam mutuamente. Ou melhor ainda, mundos que se desmentem uns aos outros. Desta forma, o tempo do mundo passa a ser uma linha que, sucessivamente, se bifurca entre presentes incompossíveis, e passados não necessariamente verdadeiros, todos eles existentes, e constituintes do “falso”, como solução e salvação da noção de “verdade”. É neste princípio que assenta a designação de “potências do falso” de Deleuze, que ajuda a desenvolver o método mais próprio da narração cristalina, o disnarrativo (termo criado por Alain Robbe-Grillet). O disnarrativo pretende assim, não ser uma negação da existência narrativa, mas uma negação desta narrativa como modelo de “verdade”. Tal deve-se ao facto de, ao se fazer uma globalização, e respectiva integração temática, confina-se a obra a um único sentido, sendo esta uma reprodução mimética e “verídica” do quotidiano, ao qual tudo se submete e compara, numa relação de “justiça”. Já no cinema disnarrativo, a pluralidade e multiplicidade de sentido não permite nunca uma sujeição a um único julgamento de “verdade”, pois a migração entre “bifurcações” implica sempre a incompossibilidade entre os vários sentidos, onde estes se criam, apagam e recriam, numa constante reciclagem de sentidos.
Assim, pode-se afirmar que é crucial a um registo ensaístico, como o de Resnais, um tal sistema narrativo que envolva uma polissemia de sentido, já que, sendo “a liberdade do pensamento”, uma das características fundamentais na transposição ensaística, é crucial que o autor não seja submetido a um modelo único de “verdade”, que avalie o seu progresso, através de uma base de veracidade, mas antes, que seja este a construir a sua verdade, paralela à do mundo, e onde a subjectividade é algo assumido na sua construção, ou talvez até, onde este pode “ser inocente, até na mentira” (A. Robbe-Grillet). É então, através do universo incompossivel, que o autor vai escolher um caminho único entre as diversas, e sucessivas, bifurcações, desenhando a sua reflexão entre as várias realidades.

Filipe Franco
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