A construção narrativa de Inland Empire apresenta uma estrutura totalmente distinta da clássica. Não há um princípio, um meio e um fim claros e objectivos. Na realidade há o que aparenta ser uma sequência de cenas não contínua e de difícil conjugação. Por outro lado, também esses acontecimentos não ocorrem de acordo com uma ligação paralela de histórias, as quais aparentam dar-se ao mesmo tempo embora em espaços diferentes. Trata-se, na realidade, de uma apresentação contínua de acontecimentos estranhos e não justificados: vários quadros descontínuos de histórias que começaram in média rés e que permitiram ao espectador ter, por breves momentos, um ligeiro vislumbre de qualquer coisa que se passou.
Quando há, pela primeira vez, uma cena e uma personagem que se assemelha a algo que reconhecemos como normal no nosso mundo cinematográfico, esta é nos apresentada como sendo a personagem principal - Lara. Esta situação traz ao espectador uma sensação de maior segurança, que até aqui não lhe tinha sido dada. A vizinha, estranha personagem, entra pela casa de Lara e profere a seguinte frase “I am the new neighbour. I live just down the street”. Apesar da sensação de alguma dose de insanidade, que é transmitida pelo excessivo aproximar do plano à cara da actriz e da objectiva olho de peixe, esta personagem aparenta ser uma pessoa civilizada. Mais tarde, o diálogo começa a tomar proporções um pouco estranhas. A “nova vizinha” desabafa com a personagem principal contando-lhe que perdeu a noção de tempo, que já não sabe se hoje é na realidade o dia de amanhã, ou mesmo que não tem noção das horas, que já não sabe distinguir entre as 9:00 e as 24:00. Tem um discurso incrível e apenas inicialmente desconexo e sem qualquer sentido. A vizinha diz-lhe que “se fosse amanhã” Lara estaria “sentada ali” e aponta para os sofás que estão à sua esquerda. Afinal não passámos a ter uma história normal no sentido comum do termo. Mas sim uma maior sensação de perdição.
A frase da vizinha resume, na realidade, todo o tempo do filme. Não sabemos se estamos no filme ou se o tempo dos acontecimentos que presenciamos ocorrem antes ou depois, ou até se estão a acontecer em simultâneo. Não sabemos se voltamos atrás; se estamos no dia de ontem ou no de amanhã. E, nesta embrulhada temporal, surge a personagem principal, que se encontra no mesmo estado de espírito que esta encruzilhada intemporal. Uma das cenas junta estas duas irrealidades de uma forma incompreensível. Há o que aparenta ser um twist. Quando se dá uma reunião entre o realizador, o actor e a actriz estes ouvem um barulho no estúdio: O actor corre atrás de alguém que foge pelo cenário labiríntico - que está montado no estúdio onde decorre a reunião - mas esse alguém entretanto desaparece milagrosamente. Depois de, assumidamente, vermos o filme a ser rodado, Lara vai ter a uma casa e vê-se a si mesma, mais ao actor e ao realizador a terem aquela mesma reunião. Mais tarde Lara vê-se sentada à mesma mesa a ter aquela mesma reunião. Ela vê-se a si mesma. Surgem nos uma série de perguntas: Voltámos atrás? Mas a história do filme que está a ser rodado avança; para onde é difícil de precisar. O espaço é um local difícil de definir. Se para os actores, que fazem uma pré-leitura do guião na reunião, o que está atrás de si é apenas de um cenário, para a personagem que Lara interpreta (e que se vê ter a uma reunião) o cenário é, na realidade, um espaço muito real. Tal como a ideia que é dada ao espectador, quando este assiste a um filme. Racionalmente sabemos tratar-se de um cenário; que aquele espaço foi concebido e criado com um propósito. Mas aceitamo-lo como sendo real. É o espaço das personagens e, ao identificarmo-nos com elas, passa também a ser o nosso. Quando começamos a entrar no mundo que Lara interpreta, tal como ela, também não sabemos onde estamos, qual o tempo onde se encontra a história e o que realmente se está a passar. O espectador é confrontado com a irrealidade e manipulação do cinema, mas, ao mesmo tempo, não sai delas. O espectador afirma: isto não é real. Mas, ao mesmo tempo, vê-se envolvido numa história demasiado rocambolesca e complexa para conseguir sair dela e afirmar: não estou perante um filme. Parece tratar-se de um pesadelo. Temos consciência que o estamos a ter, mas não conseguimos libertar-nos. Parece real, apesar de sabermos que não o é. Vemos o backstage do filme que está ser rodado, como se de um making of se tratasse: mas continuamos com a personagem interpretada por Lara e com a sua visão conturbada de tudo aquilo que se passa à sua volta. Ela ainda não acordou. Apesar dos elogios que lhe tecem pela sua excelente representação no filme, ela continua na sua personagem. No final, Lara "acorda" e vê finalmente os cenários. Esta vê no ecrã do cinema tudo aquilo por que passou durante o filme e ao qual nós assistimos. O mundo da ficção une-se com o mundo real. Já não se percebe o que é o quê. Num plano de costas uma rapariga vê na televisão o momento presente em que se encontra. Duas raparigas a correr no corredor. A rapariga ao mesmo tempo que as ouve na televisão ouve-as no seu mundo, a passarem lá fora no corredor. Há uma desconstrução extrema da construção da narrativa clássica. No final a objectiva olho de peixe, que antes filmava a vizinha, contempla agora a personagem principal que se vê sentada no mesmo banco que antes a vizinha lhe apontara. Voltamos novamente a uma incerteza. Esta outra personagem, que Lara agora contempla, é ela mas vestida de menina. Lara olha para o seu outro eu desconcertada e incrédula. Mas é com esta nova personagem que o filme acaba, em total contraste com a indumentária da nova personagem de Lara, numa festa onde pessoas totalmente desconhecidas dançam ao som de Nina Simone. A festa é o real e Lara já se encontra na nova personagem? Mas visto que estamos a ver um filme, a festa pode ser considerada real? e um cenário atrás desta festa? O filme acabou?
Sara Godinho
Nº 630